Com dois anos, crianças com síndrome congênita causada por zika têm desenvolvimento equivalente ao de bebês de menos de três meses



Ao acompanhar bebês com síndrome congênita pelo vírus Zika que nasceram com microcefalia, pesquisadores do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), em Pernambuco, observaram que, aos dois anos de idade, essas crianças têm um neurodesenvolvimento equivalente ao de bebês de dois a três meses de vida.

Segundo o estudo publicado em julho deste ano no BMJ Open[1], o atraso significativo foi observado em um grupo de pacientes que vem recebendo atendimento multidisciplinar e terapia de reabilitação desde o nascimento. A pesquisa foi desenvolvida durante o doutorado do Dr. Lucas Alves, neurologista pediatra do IMIP, sob orientação do Dr. João Guilherme Bezerra Alves, e com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Bill e Melinda Gates. O neurologista falou ao Medscape sobre o trabalho.

Os autores realizaram uma avaliação neurológica completa em 24 crianças, o que incluiu o teste Denver II (Denver Developmental Screening Test II), que é um instrumento de rastreamento de risco de desenvolvimento infantil, além de exame da circunferência da cabeça e exame neurológico clínico.

À época do exame clínico, as crianças tinham idade cronológica média de 19,9 meses, mas apresentaram linguagem equivalente à de crianças de 2,1 meses. O domínio motor grosseiro foi correspondente ao de bebês de 2,7 meses, o motor fino/adaptativo ao de 3,1 meses e o domínio pessoal/social ao de crianças de 3,4 meses.

Quanto à circunferência da cabeça, esta permaneceu abaixo do terceiro percentil para idade e sexo, e a taxa de crescimento até o segundo ano de vida foi de 10,3 cm, sendo que o esperado era de 13 cm. O tônus muscular foi aumentado em 23 das 24 crianças, os reflexos musculotendinosos estavam aumentados em todas as crianças e clônus (contrações musculares involuntárias) foi observado em 18 dos 24 participantes.

O Dr. Alves afirma que nenhuma das crianças avaliadas falava, andava ou sentava sem apoio. Para o especialista, a gravidade do atraso observado era de certa forma esperada.

“Todos os pacientes apresentavam alteração grave no exame de imagem, na ressonância magnética (RM) do crânio e na tomografia (TC). Além de microcefalia, essas crianças tinham hidrocefalia, malformação da região posterior do cérebro, transtornos do cerebelo e lisencefalia, paquigiria e polimicrogiria, que são alterações do desenvolvimento cortical do cérebro”, conta o especialista, destacando que o grau de atraso esteve associado com o quão lesionado o cérebro do paciente se apresentava nos exames de imagem.

“Crianças que tiveram alteração mais grave na ressonância magnética apresentaram um quadro neurológico mais grave, enquanto as que revelaram menos malformação na RM mostraram um quadro menos grave”.

Além de o cérebro estar muito lesionado, a presença de outras doenças foi alta. Todos os lactentes foram alimentados por sonda gástrica e seis dos 24 estavam desnutridos. Mais de 30% tiveram admissões hospitalares durante os primeiros dois anos de vida por causas variadas, entre elas, epilepsia não controlada, derivação ventrículo-peritoneal, infecção, diarreia, infecção do trato urinário e pneumonia. Vinte e três crianças tinham também episódios recorrentes de convulsão e recebiam medicamentos antiepiléticos para tratamento.

“São crianças que, do ponto de vista clínico, são casos graves; vivem em ambiente hospitalar”, diz o médico.

Todos os participantes faziam terapia ocupacional, fonoaudiologia, fisioterapia, e as famílias recebiam apoio psicológico. Para o pesquisador, como o cérebro das crianças foi muito afetado, se essas medidas não estivessem sendo feitas, os resultados provavelmente seriam ainda piores.

“Nossos achados mostram que, na verdade, a principal medida terapêutica deve ser a profilaxia, a prevenção da infecção por zika em gestantes, pois, depois que as crianças nascem, o quadro é muito grave”, afirma o Dr. Alves.

Após o nascimento, as crianças afetadas pela síndrome precisam de tratamento multidisciplinar que envolve pediatra, gastroenterologista, nutricionista, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, oftalmologista, otorrinolaringologista e neurologista.

“Quanto mais cedo se iniciar a reabilitação, melhor, mas é na fase precoce, até os dois anos de vida, que o cérebro se desenvolve mais. Então, se ele não se desenvolveu adequadamente até esse momento, é ainda mais difícil que se desenvolva depois”, diz.

Existem quadros de síndrome congênita pelo vírus Zika sem microcefalia. Segundo o médico, crianças com esse quadro têm desenvolvimento melhor. Infelizmente, são casos que representam uma parcela pequena dos afetados.

“Das crianças que nascem com zika, uma minoria nasce sem microcefalia. Tenho apenas um paciente com esse quadro”, diz o médico, citando um artigo dos Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos Estados Unidos que reportou apenas 13 casos do tipo em crianças dos estados de Pernambuco e do Ceará[2].

Disponível em: https://portugues.medscape.com/verartigo/6502681